COLUNA RAUL LODY
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O ofício de vender comida na rua.

Integradas as paisagens das cidades, especialmente Salvador, Rio de Janeiro e Recife são personagens urbanos, mulheres trabalhadoras, verdadeiras mantenedoras de famílias, geralmente vinculadas aos terreiros e continuadoras dos ganhos, das vendas nas ruas, praças, são as vendedeiras, quituteiras, baianas-de-tabuleiro, baianas-de-rua, baianas do acarajé ou simplesmente baiana. O tipo social e cultural marca a vida de algumas capitais, projetando em roupa, comportamento ético, oferecimentos de comidas, uma marca, muitas vezes dos terreiros no cotidiano de milhares de pessoas, identificando a baiana como uma quase síntese do que é afro, também de um sentimento sagrado próximo, convivente e integrado às cidades.

Algumas vendedeiras, como tias, tias da Costa – mulheres negras, filhas e netas de africanos para a primeira categoria e, para a segunda, eram mulheres africanas, muito respeitadas e em sua maioria se vinculavam ao candomblé. Vendiam produtos africanos, alguns em lojas – quitandas – estabelecidas em áreas da cidade do Salvador como o Pelourinho, por exemplo, ou em outros tipos de venda, onde se encontravam panos de alacá – panos-da-costa –, palha, obi, orobô, contas, sabão, todos da Costa, da costa africana, provenientes dos grandes e famosos mercados da Nigéria, do Benin. Essas vendas também funcionavam como verdadeiros reencontros com terras de origem, com a África. Origem de ancestrais, era uma África falada e simbolizada principalmente pelos produtos procedentes de terras, de cidades, de famílias, de artesãos, de valores emocionais unidos aos valores utilitários para o cotidiano, para o terreiro, para o curso religioso, para o orixá, para o vodum, para assim manter ligações permanentes entre a Bahia africanizada e a África legitimadora das suas continuidades além  Atlântico.

Contudo, o ganho com as comidas marcou a atividade econômica da mulher nas ruas, dando certa autonomia para cumprir os ciclos de festas-obrigações dos terreiros. O ganho financia o religioso, garante os compromissos individuais para com o orixá, o vodum, o inquice, o santo. Os conhecimentos do artesanato culinário unem-se ao artesanato da costura, do bordado, do enfiamento de fios-de-contas, trabalhos com búzios, palha-da-Costa e outros materiais integrados ao imaginário dos terreiros e que funcionam em perfeita relação com o que se come, o que se vê, com o que significa cada alimento feito no dendê, cada fio-de-contas, pulseiras, maneiras de arranjar na cabeça os oujás, para os torços e tantos e muitos outros detalhes desse verdadeiro barroco afro que é a rica roupa da baiana.

Compõe o ato do ganho ou da venda a roupa, o estar de saia ou usar saia, o que significa trajar à baiana.

Raul Lody

O AUTOR Antropólogo, especialista em antropologia da alimentação, museólogo. Representou o Brasil no International Commission the Anthropology of Food. Autor de vasta obra publicada com centenas de artigos, filmes, vídeos, e mais de 70 livros nas áreas de arte popular e gastronomia/cultura/ patrimônio. Reconhecido por premiações mundiais e nacionais pelo Gourmand World Cookbook Awards. Curador da Fundação Gilberto Freyre, da Fundação Pierre Verger e do Museu da Gastronomia Baiana do Senac Bahia.