Come-se com o garfo e a faca, com a colher, com a mão, com canudo, no cartucho de papel, com o hashi. Come-se ainda com os olhos, com o espírito, com o corpo inteiro. Come-se no prato, na travessa, na cuia, no alguidar, na folha, na palha, na gamela de madeira. Come-se sobre toalhas, esteiras, mesas. Come-se sentado no chão, no colo, de pé. Come-se na panela, no tacho, raspando o que ficar no fundo, do refogado, o que geralmente tem um sabor todo especial de transgressão, sabor especial e único. Pois comer é uma ação muito mais ampla do que simplesmente ingerir sais minerais, lipídios, glicídios, entre outros componentes para nutrir e promover o metabolismo.
O desejo, o sonho. A vontade de descobrir, de reencontrar, de simbolizar, por meio de uma comida ou por um elemento da composição estética da comida, traz lembranças, memórias e referências que são as mais pessoais e íntimas.
Desse modo a comida pode significar um tema de desejo: merengue com creme chantili, bomba-de-chocolate, sorvete duplo com calda de morango ou de caramelo, brigadeiro, profiteroles; ou mesmo um franguinho no espeto, gotejando gordura no forno-vitrine da padaria, entre muitos e muitos outros exemplos, que motivam o sonho de querer comer, comer comida e comer sonhos.
A busca pelo sabor ideal através de uma imagem traz o símbolo fundamental da moral cristã que é o fruto do paraíso, a maçã. Maçã primordial, fruto ancestral do desejo, fruto proibido, e por isso, duplamente desejado.
Comer com os olhos é também uma preparação, a percepção, um estímulo para a produção de saliva, ficar com a boca cheia d’água; e, assumir aquele “olho-grande” pelo doce, pelo super sanduíche, pelo acarajé ou pelo pãozinho de queijo.
Há uma satisfação filosófica na refeição idealizada que ocorre com o desejo visual de comer com os olhos. É o ritual que antecede o comer com a boca, para que em seguida se coma por inteiro, se coma com emoção.
Ingerir a comida compõe e integra imaginários que vão muito além da boca, da língua, das percepções dos paladares. Pois se sabe que os paladares são construídos, são escolhas e identificações orientadas pela cultura. Assim, gostar, desejar, querer comer “aquilo” ou aquele ingrediente; é uma motivação que é temperada pela história, pela sociedade, pela religiosidade, pelos papéis que a cultura determina para homens e mulheres.
Imaginar os sabores e experimentar a comida compõem os momentos de percepção e de prazer físico. É a mais perfeita relação de prazer entre o homem e a comida. Matar a fome é apenas uma necessidade biológica, mas o prazer em comer é uma conquista do homem.
Geralmente acompanham as refeições do olhar – ritual de comer com os olhos – as palavras, os textos, as louvações, as críticas, as provocações que constroem o ritual subjetivo e intransferível de saborear imagens.
Os cenários, os contextos, os sons do lugar, as pessoas, os utensílios, as luzes, as cores, os cheiros, levam a “fome-visual” a atingir momentos de culminância para então exercer o direito ao desejo.
Na conquista daquilo que se deseja pode-se perceber que a fantasia do que se deve comer é mais saborosa do que a própria comida, exercendo-se assim a plena conquista pelo gosto estimado, pelo gosto esperado.
Quando se conquista a comida, que foi anteriormente devorada pelos olhos, inicia-se outro ritual, íntimo, secreto e individual, que é o de ingerir o prêmio, e aí se vive o “gosto-gozo” no corpo.
A fome da imagem concentra-se nela mesma, não sendo necessário experimentar o verdadeiro gosto, o que é sentido no paladar, é a saciedade vivida plenamente pelo olhar.
RAUL LODY.