COLUNA RAUL LODY
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Quiabos no altar de Cosme e Damião

As devoções domésticas são muitas, por isso há, por tradição, uma grande intimidade das pessoas com os santos da sua casa, e isso faz com que se viva mais intensamente a relação de fé com a festa do santo.

Assim, são reforçados os elos de cumplicidade, intimidade, e de interpretação sobre ofertas, pagamentos de promessa, rituais de zelo pelas imagens e seus altares; pois cada altar é um lugar sacralizado para a conversa entre a pessoa e o sagrado.

Os santos da casa são peculiares, e se faz quase que uma inclusão de parentesco dele com a família, por isso eles precisam ser cuidados com afeto.

Ainda, as devoções domésticas, da casa, são criativas na construção de uma estética autoral, e que já faz parte da própria casa.  Flores, velas, fitas, toalhas bordadas; o estilo da imagem do santo. Tudo deve parecer tão vivo que só falte o santo falar. Também, há variados utensílios para que os santos dos altares comam. Sim! Eles são alimentados com comidas especiais, comidas que trazem identidade, fé, e as “preferências” de cada santo.

Na fé afro-baiana, muitos dos santos da Igreja ampliam suas funções quando estão profundamente relacionados com os orixás, e outras divindades do imaginário de matriz africana. Há um diálogo integrador neste complexo de devoção e de culto que une a liturgia com uma riqueza de alimentos; muitas e variadas comidas que expressam fé, e alimentam os santos.

Normalmente, há uma transmissão da fé por herança, que segue nas famílias por gerações, e isto faz com que os rituais sejam mantidos, preservados, assim como as memórias dos cardápios e do ritual para o oferecimento de cada comida.

Entre os santos mais populares nestas devoções das casas estão São Cosme e São Damião. Santos que gostam de comer caruru de quiabo, com todos os temperos e com muito azeite de dendê. E o seu cardápio é oferecido de modo muito especial, pois o caruru é servido numa grande gamela redonda de madeira, para as pessoas da casa, e nos pratos de barro para os santos, diante das suas imagens.

Esse verdadeiro banquete é formado por muitas comidas de azeite como: xinxim de galinha, farofa vermelha,  acarajé; abará, feijão de azeite, vatapá, pipoca; ainda, inhame, batata doce, roletes de cana de açúcar; cocadas, milho branco cozido – ebô –; acaçá branco, entre outras opções de comidas que ganham dimensões simbólicas, e que marcam verdadeiras assinaturas que fazem deste ritual de dar de comer aos santos uma grande celebração coletiva.

Os cardápios rituais feitos em devoção aos santos Cosme e Damião trazem a identidade de cada família, e por isso são carurus autorais. Assim, sabor e devoção juntam-se para temperar e comemorar estes santos da Bahia.

 

Raul Lody

 

O AUTOR Antropólogo, especialista em antropologia da alimentação, museólogo. Representou o Brasil no International Commission the Anthropology of Food. Autor de vasta obra publicada com centenas de artigos, filmes, vídeos, e mais de 70 livros nas áreas de arte popular e gastronomia/cultura/ patrimônio. Reconhecido por premiações mundiais e nacionais pelo Gourmand World Cookbook Awards. Curador da Fundação Gilberto Freyre, da Fundação Pierre Verger e do Museu da Gastronomia Baiana do Senac Bahia.