COLUNA RAUL LODY
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Comida sagrada e comida de rua

 A paisagem urbana de São Salvador é, sem dúvida, pontuada por uma das mais importantes referências de personagem, tipo sociocultural e econômico que é a ‘baiana de acarajé’.

 Desde os ‘ganhos’ no tempo do Brasil colônia, as mulheres e suas vendas ambulantes pontuam a cidade, fazendo ‘quitandas’ – comércio de frutas, doces de coco, bolos, mingaus, panos-da-costa e outros produtos da costa africana, cuja clientela, na Bahia, sempre buscou e busca referenciar-se e se situar nessa relação de identidades entre a África e o Brasil.

 A história da cidade, especialmente o chamado centro histórico, Pelourinho e áreas próximas, as praças, esquinas e ruas da cidade baixa, ou os locais consagrados, como Igreja do Bonfim, Elevador Lacerda, entre tantos outros, têm na baiana de acarajé forte sinalização urbana, marcando lugar, território da geografia e da vida cotidiana que se amplia no tempo especial da festa.

Sem dúvida o acarajé, comida boa de comer e, especialmente, comida boa de representar e de significar, é um marco da permanência do gosto africano, formando e conformando o paladar do brasileiro.

 Faz-se a identidade pelo que se come, como se come e pela relação que há entre a comida e os múltiplos papéis sociais dos indivíduos.

 Marca gênero, hierarquia, atividades profissionais, estabelece compromissos com os rituais cotidianos e notadamente no tempo especial das festas. Comer o acarajé, certamente, não é apenas comer um bolinho de feijão temperado e frito no dendê; é comer e aproximar fisicamente o trajeto e a formação da vida brasileira e integrar e trazer ao corpo, pela boca, pelo olfato e pelo olhar como é nossa e próxima essa África real e também como é nossa essa África idealizada.

 O acarajé é uma comida tradicional feminina, como o churrasco é do universo masculino. Há um sentido culinário marcado pelo oficio de mulher que traduz  a receita  africana no bolinho de feijão-fradinho, cebola e sal frito no azeite-de-dendê. Tudo lembra e traduz o mundo dos orixás e antepassados e permanece no mundo dos homens e no prazer diário de comer o acarajé.

Feijão, leguminosa conhecida em todo o mundo, é base de diferentes pratos na tradicional e popular culinária afrodescendente. Feijão-de-azeite, com dendê; abará, mesma massa do acarajé, acrescido de dendê, cebola, cozido em folhas de bananeira no vapor; feijoadas de feijão preto e feijão mulato acrescido de legumes; feijão com couve, torresmo, angu de fubá de milho; feijão em caldinho bem temperado, feijão, feijão.

 A intimidade do processo do fazer o acarajé, artesanal, inicia-se com o pilão de pedra, conhecido como pedra de acarajé, onde o feijão é preparado para a massa e constitui o grande momento para se garantir um bom, crocante e delicioso acarajé.

O ritual do bem fazer está no bater a massa na panela com colher de pau e assim manter o ritmo do sabor de cada porção que será deitada sobre o dendê fervente, exalante daquele cheiro-convite, sedutor, anunciando que há acarajé.

Raul Lody.

O AUTOR Antropólogo, especialista em antropologia da alimentação, museólogo. Representou o Brasil no International Commission the Anthropology of Food. Autor de vasta obra publicada com centenas de artigos, filmes, vídeos, e mais de 70 livros nas áreas de arte popular e gastronomia/cultura/ patrimônio. Reconhecido por premiações mundiais e nacionais pelo Gourmand World Cookbook Awards. Curador da Fundação Gilberto Freyre, da Fundação Pierre Verger e do Museu da Gastronomia Baiana do Senac Bahia.