COLUNA RAUL LODY
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Petróleo cru à mesa?

A grande costa atlântica da Bahia traz relatos sobre as navegações portuguesas que mostram a fartura na pesca, e noutros processos de buscar alimentos no mar. E há muitas crônicas sobre este rico acervo das águas desde o século XVI.

Por tradição, na Bahia, vive-se uma rica cozinha à base de produtos do mar, dos manguezais e dos rios, que já faz parte da formação dos seus sistemas alimentares, muitos destes recuperados das dietas dos povos nativos, ou de criações ibéricas e africanas.

Por exemplo, sobre o aratu:

“Há outra casca de camarões, a que os índios chamam aratús, que são da mesma maneira dos primeiros, mas mais pretos na cor, e têm a casca mais dura, que se criam e tomam da maneira dos de cima, os quais cozidos são muito bons.”  (Bahia, 1587. Gabriel Soares de Sousa. Tratado descritivo do Brasil. Pg. 298).

Dos peixes e suas representações numa crônica do século XIX:

“Um espetáculo interessante é o que oferecem em conseqüência os mercados de peixes das grandes cidades como Bahia e Rio de Janeiro onde em grandes recintos e sobre grandes mesas estão expostas (...) todas as espécies imagináveis de peixes de água-doce e do mar, mariscos e crustáceos edíveis. Aí se vê a carne alva e rija do dourado, além do esquisito barbeiro, do apreciado robalo, e mais adiante a sororoca não menos apreciada como acepipe. Um negro grita com muita gesticulação oferecendo a pouco convidativa Maria-mole; numa outra mesa um pescador mal humorado parte com a mão destra uma espécie de cação, sucuri, que na Bahia é o principal alimento dos escravos e da gente pobre.” (Bahia/Rio de Janeiro, 1868/1871. Oscar Canstatt. Brasil, a terra e a gente.  Pg. 75)

Receitas de moquecas de peixe, algumas feitas em folhas, e que seguem as   técnicas indígenas; outras com azeite de dendê e leite de coco que trazem a pluralidade e a multiculturalidade das mesas afro-baianas. Ainda, há as frigideiras, os ensopados, e muitos outros pratos que nascem dos sabores das águas. São cardápios que se consolidaram nessa profunda relação com o mar e as muitas possibilidades de ingredientes que ele oferece.

E esta tradicional produção de comidas do mar vinculam-se aos milhares de pescadores, de catadores de mariscos, entre muitos que fazem das águas o sentido dos seus ofícios.

E esses consagrados acervos que vêm do mar para se comer, e para se viver, estão sob ameaça por causa do recente evento poluidor que foi constatado que do dia 30 de agosto até 28 de outubro de 2019, foi detectado um volume de petróleo cru de 3.847 toneladas, e que vem ainda aumentando e invadindo o mar do Nordeste, e a costa da Bahia.

O petróleo é definido como uma mistura complexa formada por benzeno, tolueno e xileno, entre outros, todos componentes altamente tóxicos, e ainda não são conhecidas as dimensões dos impactos no meio ambiente e na vida dos profissionais do mar.

Sem dúvida, o amplo comércio de ingredientes do mar está em estado de alerta, e as consequências sociais e econômicas que afetam as cozinhas, as receitas que nascem dos peixes, dos camarões, das ostras, mostram-se “moralmente contaminadas”; e, ainda, sem os laudos científicos que possam verdadeiramente relatar as reais dimensões desse petróleo cru no mar da Bahia. Assim, os produtos do mar estão sob risco de contaminação grave, e este processo poderá intervir nos hábitos alimentares da região.

Raul Lody

O AUTOR Antropólogo, especialista em antropologia da alimentação, museólogo. Representou o Brasil no International Commission the Anthropology of Food. Autor de vasta obra publicada com centenas de artigos, filmes, vídeos, e mais de 70 livros nas áreas de arte popular e gastronomia/cultura/ patrimônio. Reconhecido por premiações mundiais e nacionais pelo Gourmand World Cookbook Awards. Curador da Fundação Gilberto Freyre, da Fundação Pierre Verger e do Museu da Gastronomia Baiana do Senac Bahia.