COLUNA RAUL LODY
  • Compartilhe:
Acarajé, a comida e o feminino

No olhar patrimonial, a receita de uma comida só adquire um real significado quando a realização de suas técnicas culinárias, e o uso de implementos tradicionais durante o seu preparo, possibilitam criar um contexto repleto de ritualidade, onde se misturam identidade, sabedoria e gênero.

Assim é o acarajé, muito mais do que a realização de uma receita feita com bons ingredientes, e com azeite da flor do dendê para a fritar; tem que saber aerar a massa, saber como bater com a colher de pau; e, desse modo, conseguir um bolinho crocante por fora e macio por dentro. E, com certeza, o melhor acarajé.

Além do mais, o acarajé tem tantos significados; e valores de civilizações e culturas da África Ocidental; e, ao mesmo tempo, faz da Bahia o seu território privilegiado dentro do Brasil.

O acarajé, segundo as tradições orais de base ioruba, é uma comida que foi ensinada às mulheres pelo orixá Iansã, para que elas tivessem um ofício e pudessem criar seus filhos.

Sem dúvida, o trabalho feminino afrodescendente de fazer comida é amplo, e está presente no Brasil desde os “ganhos”, venda de comidas como: angus, cocadas, feijões; frutas, abarás, efós, acarajés; entre tantos. Ainda, havia as mulheres de gamelas com a venda ambulante de comidas; as quitandeiras; e tantas outras que comercializam comida nos mercados e nas feiras.

E em cada tabuleiro, e banca de comida de azeite nas ruas do São Salvador, cada acarajé é uma celebração do ofício de fazer  para Iansã os “acarás” , os bolos e fogo da mulher mais sensual de Xangô, o Alafin de Oyó.

Está também no ofício de se fazer acarajé, a valorização da liberdade da mulher de viver no seu trabalho, e na sua dignidade, o ofício de fazer comida.

O AUTOR Antropólogo, especialista em antropologia da alimentação, museólogo. Representou o Brasil no International Commission the Anthropology of Food. Autor de vasta obra publicada com centenas de artigos, filmes, vídeos, e mais de 70 livros nas áreas de arte popular e gastronomia/cultura/ patrimônio. Reconhecido por premiações mundiais e nacionais pelo Gourmand World Cookbook Awards. Curador da Fundação Gilberto Freyre, da Fundação Pierre Verger e do Museu da Gastronomia Baiana do Senac Bahia.